23 de maio de 2014

(sem título)

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Beba, beba.
Beba as lágrimas pra não dar ressaca.
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olhos

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o outro me viu
e do olhar entrou em mim
a flecha
de mim
os olhos saltaram
dois ocos no osso, um oco no peito
(areia sobre as cavidades
areia nos olhos)

o olhar
– atravessado no corpo
por entre as costelas
olhando o vazio
por dentro –
a incisão
as penas pra fora
(flor na lapela),
a travessia
tocando a medula
pedra aguda no vento
por trás das costas
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22 de maio de 2014

presente

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(agora)
o teu cheiro – na minha pele –
(marca a falta)
que me faz
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21 de maio de 2014

Vivo morto

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Um corpo vivo morre.
Corpo frio.
Músculos duros.
Vísceras moles.
As unhas crescem.
A pele apodrece.
Membrana do corpo pro mundo esburaca.
Agora os humores vazam,
escorrem, transbordam e jorram.
E o corpo vivo ainda morre.
Em jatos ejacula vida morta.

Espalhados pelo corpo,
bandanas, esparadrapos e pedaços de outras peles.
Cobrindo cada buraco um enxerto de pele roubada aos poucos
apodrece e desfalece.
Buraco velho de novo esguicha,
o corpo contrai as costas, rasga o abdome, expõe as vísceras.
Agora roubar um outro corpo,
inteiro.
Colá-lo à pele toda e andar a dois,
um morto e um vivo,
um vivo e um morto.

Os corpos grudarão,
então se rasgarão,
cairão moles e duros,
seccionados em partes desiguais.

Agora são dois corpos
procurando dois corpos
cada um.
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(sem título)

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a boca fechada
......................:
........................a falta da outra, aberta, oco
........................a falta do eu, erro, estilhaço
........................apenas
........................abrir a boca
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Saudade do futuro

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hoje fim
em mim
aquilo já era há tanto

Do que restou
– a memória,
a pele curtida,
os músculos apertados,
a retina embaçada –
me alimento
para me doer
em imaginar.
Sonhar
um futuro nunca passado.

E chorar e soluçar e engasgar de promessas, declarações e desejos abortados
(quando? quando foi que não nos demos conta? quando foi que tudo desabou sobre nós e continuamos a nos
[arrastar, soterrados por nossas próprias solidões?)


E então não dormir jamais.
E ver o sol raiar frio
e colorido só para me negar.
Para, por fim, te negar.
E afirmar você. E afirmar eu.
E enterrar em mim a saudade de ti (que nunca virá).
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Proteção de mentira

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Porque nos ensinaram que a verdade machuca.

Colhemos mentiras e construímos falsas casas.
Nos refugiamos no certo.
Erramos pelas ruas.
Pelos mesmos caminhos.
Cobrimos o rastro com um outro rastro.
E ontem e hoje, sem diferença,
descobrimos nada
e sentimos tampouco.

Porque nos ensinaram que a verdade machuca.
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